A ideia não é nova. O grande cultor da mesma foi o checo Franz Kafka. Bom, falando com certeza, Kafka era uma metamorfose: nasceu no Império Austro-húngaro mas quando morreu a sua cidade natal era da Checoslováquia. Se voltasse ao mundo, hoje iria à República Checa para rever a sua Praga.
Morreu em Klosterneuburg, que foi também Império, depois República e hoje dilui-se no mapa da Áustria.
Mas não era isto o que eu queria dizer. Queria dizer que a ideia que me ocorreu já Kafka a trabalhou com veemência. Falo da ideia de um dia acordarmos transformados em insetos. Aconteceu-me isso esta natal.
Estive sentado tempo de mais. À medida que o tempo passava, todo o meu corpo se distendia e se enterrava na cadeira, quase a colocar-me no plano horizontal. O mesmo se passava com os que me acompanhavam. Não sei se o termo é esse, acompanhar, pois cada um desfilava a sua solidão de modo diverso. Como os insetos, meio enterrados nas cadeiras, creio que, com mais ou menos graduação nos óculos, todos acabámos por adquirir uma perspetiva de inseto: deitados, a olhar em redor e em frente, e sobre nós, mais acima, coisas quotidianas como móveis ou candeeiros ganharam contornos inesperados, distâncias variáveis, formas intocáveis.
Habituados a posturas quotidianas, umas vezes de pé nos transportes públicos, outras vezes arqueados sobre computadores e tampos de secretaria, ou volantes dos nossos carros orgulhosos, esta postura insectívora-natalícia pareceu-me exuberante.
Como alguns insetos, também nós estávamos um pouco aturdidos com as luzes. Alguém enchera a nossa rua com uma estruturas de madeira e colocara-lhes lâmpadas amarelas e brancas, formando estrelas e grinaldas. Os insectos andavam por ali, à volta das luzes, como antes o faziam no néon da cozinha e da pequena lâmpada da casa de banho.
Também nós, como os insetos, éramos atraídos pelo cheiro intenso do açúcar. Parávamos conversas dormentes para trincar uns bolos adequados, com açúcar cristalino e frutos secos coloridos. E zumbíamos de satisfação.
Alguém disse ter lido qualquer coisa sobra a nova smart food, a nova comida esperta, capaz de transformar os nossos corpos. Come-se a ração e fica-se bronzeado, magro, de glúteos firmes ou seios resplandecentes. E já não é ficção. Há quem a conheça e dê graças ao seu consumo. Falei do pudim que comia em pequeno com um chinês na caixa e um sabor que me parecia espetacular. E cocei as escamas e agitei as asas e cumprimentei uma barata ou um bicho prata que acabara de chegar carregado de embrulhos e tive a sensação inquietante de que as coisas, os animais e as pessoas podiam vir a ficar muito parecidos, sem diferenciação, como muitas latas num pack, mas sem desconto.
Alexandre Honrado
Historiador